sexta-feira, 27 de abril de 2018

Mãe, posso dormir na casa da vó hoje?

Escutei dentro do ônibus hoje de manhã.
Quando consegui me virar para ver a criança  que me fez voltar ao passado apenas com uma frase, ela já não estava mais ao alcance dos meus olhos. Viajei longe.
Quando foi que o tempo passou e nos fez adultos cheio de prioridades chatas?
Lutamos todos os dias por alguma coisa que não sabemos se é o que realmente queremos, quando na verdade, casa de vó é o que todo mundo precisaria pra ser feliz.

Casa de vó é onde os ponteiros do relógio tiram férias junto com a gente e passam os minutos sem pressa de chegada.
Casa de vó é onde uma simples macarronada e um pão caseiro ganham sabores diferentes, deliciosos.
Casa de vó é onde uma inocente tarde pode durar uma eternidade de brincadeiras e fantasias.
Casa de vó é onde os armários escondem roupas antigas e ferramentas misteriosas. 
Casa de vó é onde as caixas fechadas se tornam baús de tesouros secretos, prontos para serem desvendados.
Casa de vó é onde os brinquedos raramente surgem prontos, são todos inventados na hora.
Casa de vó tudo é misteriosamente possível de acontecer. Mágico. Sem preocupações.
Casa de vó é onde a gente encontra os restos da infância dos nossos pais e o início de nossas vidas.

Casa de vó, só mesmo lá dentro, no endereço do nosso afeto mais profundo, tudo é permitido.
Esse luxo não pode me pertencer mais - infelizmente - viverá comigo apenas nas mais bonitas recordações.
Mesmo assim se eu pudesse fazer um pedido agora, qualquer pedido, de todos os pedidos do mundo eu iria pedir a mesma coisa.

Posso dormir na casa da vó hoje?

(Autor desconhecido)

quinta-feira, 5 de abril de 2018


      Antepassado

Só te conheço de retrato,
não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole em meu sangue
e sem saber te vivo em mim
e sem saber vou copiando
tuas imprevistas maneiras,
mais do que isso: teu fremente
modo de ser, enclausurado
entre ferros de conveniência
ou aranhóis de burguesia,
vou descobrindo o que me deste
sem saber que o davas, na líquida
transmissão de taras e dons,
vou te compreendendo, somente
de esmerilar em teu retrato
o que a pacatez de um retrato
ou o seu vago negativo,
nele implícito e reticente,
filtra de um homem; sua face
oculta de si mesmo; impulso
primitivo; paixão insone
e mais trevosas intenções
que jamais assumiram ato
nem mesmo sombra de palavra,
mas ficaram dentro de ti
cozinhadas em lenha surda.
Acabei descobrindo tudo
que teus papéis não confessaram
nem a memória de família
transmitiu como fato histórico
e agora te conheço mais
do que a mim próprio me conheço,
pois sou teu vaso e transcendência,
teu duende mal encarnado.
Refaço os gestos que o retrato
não pode ter, aqueles gestos
que ficaram em ti à espera
de tardia repetição,
e tão meus eles se tornaram,
tão aderentes ao meu ser
que suponho tu os copiaste
de mim antes que eu os fizesse,
e furtando-me a iniciativa,
meu ladrão, roubaste-me o espírito.

Poema de Carlos Drummond de Andrade